O contágio pelo COVID-19 implicou ocorrência de pandemia
mundial, com ampla afetação das nações ao redor do globo.
Como medida de contenção do contágio, inclusive no Brasil,
vem sendo adotadas medidas sanitárias de controle de
circulação de pessoas, com a paralisação de diversas
atividades no comércio e na prestação de serviços, cujas
consequências são graves do ponto de vista
jurídico-econômico.
Esta conjuntura é causa de impacto direto em diversas das
relações contratuais vigentes entre agentes econômicos
privados, seja nos contratos civis, mercantis ou de consumo.
Nesta cartilha, portanto, são apresentadas algumas
informações e soluções relevantes para o adequado
tratamento destas relações em tempos de crise. Ressalta-se,
entretanto, que a cartilha é meramente informativa e
simplificada, visando a compreensão da questão pelo público
leigo, não afastando o imprescindível assessoramento jurídico
para tomada de decisões.
A regulação dos contratos pelo direito não ignora situações
como a atual pandemia e a implementação de medidas
sanitárias pelo poder público. Há, no código civil, a previsão legal
do artigo 393, parágrafo único, onde se lê que “o caso fortuito ou
de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não
era possível evitar ou impedir”.
É exatamente o que se tem, ou seja, a pandemia e as
consequentes medidas sanitárias do poder público configuram
esta hipótese normativa, sendo possível classificá-las como caso
fortuito ou de força maior.
2 A PANDEMIA SE ENQUADRA EM ALGUMA CATEGORIA JURÍDICA? CORONAVÍRUS COVID-19 E RELAÇÕES CONTRATUAIS ENTRE PARTICULARES
É próprio da caracterização do caso fortuito ou da força maior que a
circunstância e suas consequências independam da vontade das
partes e que estas não possam evitá-las. De tal sorte, não é possível a elas atribuir a responsabilização pelos efeitos daí decorrentes.
Por tal razão existe previsão, ainda no artigo de lei mencionado, de
que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso
fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles
responsabilizado”. Em tal contexto, se uma determinada obrigação
contratual deixa de ser cumprida total ou parcialmente em decorrência dos efeitos do fortuito ou da força maior, a parte
descumpridora não pode sofrer as penalidades que se aplicariam
habitualmente e obrigação deve ser cumprida regularmente tão logo
haja a normalização da situação.
Esta solução – descumprimento, sem imposição de penalidades, com
cumprimento posterior – se revela efetiva para aqueles casos de
obrigações contratuais simples, que se esgotam num único ato ou
num pequeno encadeamento de atos. Exemplo seria a aquisição de
um móvel com obrigação de entrega e montagem até determinada
data, sendo que por razões de força maior a entrega e montagem
atrasam por diversos dias, até a cessação do cenário que justificou o não cumprimento da obrigação. Não pode, neste caso, o comprador
do móvel exigir multa ou responsabilizar o entregador por danos
sofridos que tenham origem no atraso justificado pela força maior.
3 SOLUÇÕES, IMPASSES E CUIDADOS
3.1 MOTIVO DE FORÇA MAIOR, DESCUMPRIMENTO E IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES
Porém, obrigações mais complexas, ou as diferidase aquelas de trato
sucessivo, que se prolongam no tempo, não tem – muitas vezes –
soluções satisfatórias pela mera tolerância do descumprimento da
obrigação com justificativa na força maior. Isso porque, nestes casos, há alta probabilidade de ocorrer acúmulo de obrigações –
especialmente as de pagar – que, mesmo após a cessação do cenário
de força maior, continuarão inviabilizadas de serem cumpridas com
regularidade ou em integralidade.
Cumpre ainda ressaltar que se pelas consequências da pandemia o
cumprimento da obrigação tornar-se absolutamente impossível,
pode o contrato sofrer resolução ou extinção, sem que se
responsabilize qualquer das partes por perdas e danos, conforme os
artigos 234, 248 ou 250 do código civil, a depender de se tratar de
obrigação de dar, fazer ou não fazer, respectivamente.
3.2 TEORIA DA IMPREVISÃO E A ONEROSIDADE EXCESSIVA: REAJUSTES CONTRATUAIS
Para as hipóteses anteriormente mencionadas – obrigações
complexas e as que se prolongam no tempo – existem dois outros
institutos jurídicos que, a princípio, são hábeis a permitir melhores soluções, o que se daria pela aplicação da teoria da imprevisão ou pela configuração de onerosidade excessiva. Tais institutos têm previsão nos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil.
A teoria da imprevisão pode ser aplicada aos casos em que se verificar desproporção ou desequilíbrio na obrigação vigente e que tal desproporção seja verificável comparando o cenário do momento da
contratação com o cenário atual, afetado pelo evento imprevisível
que é a pandemia e as consequentes medidas sanitárias adotadas
pela autoridade pública que, de alguma forma, podem ter afetado as
obrigações das partes que decorrem do objeto principal da
contratação. Estando presentes estes requisitos, a lei prevê como
solução a necessidade de reajuste das obrigações contratuais para
torná-las proporcionais à situação contemporânea das partes.
Por sua vez, a onerosidade excessiva pressupõe, tal como na teoria da imprevisão, ocorrência de evento imprevisível – em que a pandemia
se enquadra – e o surgimento de um cenário no qual a obrigação de
uma das partes se torna excessivamente onerosa e, em contrapartida,
gera excessivo benefício à outra parte da relação contratual. Tal
configuração permite duas soluções: a resolução do contrato – que
implica sua extinção – ou o reajuste das obrigações.
Porém, a exigência dúplice de desvantagem e vantagem simultâneas
dificulta a aplicação do instituto, especialmente porque em muitos
dos casos atualmente enfrentados se verificam prejuízos e
desvantagens recíprocas nas relações negociais afetadas pelo
COVID-19. Além disso, verifica-se que os tribunais muitas vezes
estendem a referida exigência dúplice para os casos sujeitos à teoria da imprevisão, dificultando igualmente sua aplicação.
Em qualquer caso, não havendo ajuste ou acordo amigável, torna-se
possível a judicialização da questão para que se imponha o reajuste
ou se determine a resolução do contrato, com fundamento na
imprevisão ou na onerosidade.
Exemplo deste cenário pode ser o de um contrato firmado em janeiro
de 2019, cujo objeto é um imóvel comercial destinado à realização de
festas promovidas pelo inquilino, com vigência até janeiro de 2021.
Ocorrido o fato superveniente e imprevisível que é a pandemia, com
a proibição de aglomeração editada pelo poder público, verifica-se
alteração no equilíbrio das prestações que se dá como consequência da impossibilidade de uso do imóvel. Indo além, pode-se dizer que o
aluguel do imóvel passou a ser excessivamente oneroso face à
proibição que inviabiliza a realização de eventos pelo inquilino; e,
ainda, há vantagem excessiva para o proprietário que receberá
quantias por um imóvel que não será utilizado.
Assim, pode haver o reajuste das parcelas de aluguel ou a resolução
do contrato. A negociação e os ajustes amigáveis são fundamentais
neste momento, caso contrário a solução destas questões dependerá
da longa tramitação e do resultado incerto que é próprio dos
processos judiciais.
3.3 RENEGOCIAÇÕES CONTRATUAIS E A FIXAÇÃO DE SOLUÇÕES ADEQUADAS
Para se pensar nos parâmetros de renegociação contratual, é
fundamental se ter em vista que as relações contratuais são pautadas
no que o código civil denomina de boa-fé objetiva. Este instituto atrai uma série de deveres que são inerentes ao contrato, mesmo que não previstos expressamente, valendo destacar os deveres de lealdade, informação e transparência.
Ademais, é também de se ter em vista que as cláusulas do contrato
vigente podem conter soluções, limites e diretrizes para tratamento
desta situação excepcional, devendo as partes se atentarem a isso.
Para uma adequada negociação – em respeito à boa-fé – cumpre às
partes sempre formalizar suas necessidades de reajuste dos termos
vigentes do contrato, evidenciando as razões que levam a tanto. Não
se revela suficiente para a transparência esperada a mera alegação
genérica de que a pandemia afeta aquela relação e que, por isso, o
contrato deve sofrer alterações unilateralmente impostas.
O dever de transparência e informação passa, certamente, pela
demonstração dos nexos existentes entre os efeitos da pandemia, a
afetação dos sujeitos envolvidos e a afetação do objeto do contrato, de modo a viabilizar, entre os parceiros contratantes, uma tomada de
decisão pautada em critérios bem delineados.
Além disso, em se tratando de uma relação que se prolonga no tempo,
as partes devem realizar uma análise retrospectiva para verificar se, em momentos anteriores, foram feitos ajustes para garantir o equilíbrio econômico do contrato, inclusive pelo reajuste de preços,
estabelecimento de condições de pagamento etc.
Em decorrência da lealdade que é dever anexo da boa-fé, não se pode
ignorar haver um dever de renegociar. Isso não significa que as partes devam atingir um consenso, mas que devem se esforçar tanto quanto for possível para atingirem uma solução amistosa, com concessões recíprocas, destinada à preservação da relação contratual.
Por fim, cumpre alertar que os contratos firmados durante a pandemia
do COVID-19 afastam a aplicação dos institutos aqui apontados para
sua revisão ou extinção, caso o fundamento a ser utilizado seja a
própria pandemia. Isso porque a situação, apesar de excepcional, já
será de pleno conhecimento dos contratantes no momento da
pactuação.
3.4 SOLUÇÕES PARA AS RELAÇÕES DE CONSUMO CORONAVÍRUS
As relações de consumo, nas quais o consumidor contrata serviço ou
produto de fornecedor, são também passíveis de reajustes e extinção
pelos eventos da pandemia. Situações que alteram a situação fática
que justificou a contratação possuem efeitos semelhantes aos já
descritos, devendo-se ainda levar em conta que o código de defesa do
consumidor veda cláusulas que coloquem o consumidor em posição
de excessiva desvantagem.
Deste modo, medidas podem ser adotadas como, por exemplo, nos
casos de cancelamento de voos e de hospedagem por força das ordens
públicas de contenção de circulação social e fechamento de fronteiras.
A situação é excepcional face a sua gravidade e verdadeira
imprevisibilidade. Não só isso, mas também diversas incertezas
decorrem da circunstância de que o Brasil nunca enfrentou crise tão
ampla e que impactasse de modo tão profundo e tão diverso as
relações contratuais em geral.
Exatamente por isso é que se faz imprescindível a máxima atenção no
tratamento destas questões. O assessoramento técnico-jurídico pode
significar a obtenção de soluções mais seguras, mitigando riscos,
reduzindo prejuízos e prevenindo litígios. Igualmente é fundamental
que tratativas e novos ajustes sejam conduzidos de acordo com
práticas adequadas de negociação, por profissional capacitado.
Idêntica preocupação deve haver em relação à possível judicialização
dos conflitos originados das relações contratuais, para que os
processos sejam levados adiante com a devida técnica e com a
abordagem das teses jurídicas mais relevantes que podem ser
aplicadas para obtenção das melhores soluções.
A isso se acrescenta que todos devem estabelecer real consciência de
que a ocasião exige compreensão, cooperação e cuidado, para que se
possa enfrentar e superar, de modo bem sucedido e visando o bem
geral, este momento de crise.